Hans Staden, os novos aventureiros e a inconstitucionalidade do marco temporal

Texto originalmente publicado no portal Empório do Direito

09 / 09 / 2021 - 09 h

Por: Pietro de Jesús Lora Alarcón

Eu, Hans Staden de Homberg, em Hessen, me impus como tarefa, se a Deus agradar, de conhecer a Índia (...). [1] Assim começam os conhecidos relatos do alemão que, como diz Fernando Novais, nunca viu o Brasil como nação nem como Estado. O Brasil foi se gestando lentamente e nessa pré-história da colonização a figura que se destaca como tipo ideal é a do aventureiro, logo a dos piratas e corsários que disputavam o comércio do pau-brasil; aventureiros também eram os capitães e as tripulações portuguesas; aventureiros missionários se enterravam por estes confins para engajar o diálogo político da conversão do gentio. Dominação política, exploração econômica, missionação, três esferas e [2] três maneiras de enxergar para submeter, que seriam o passado senão fosse pelo presente.

A modernidade e a pós-modernidade criaram e recriaram a imagem dos indígenas como os “atrasados” de “arco e flecha”, os que “tem muita terra”, os membros de uma “comunidade de selvagens”, os “bêbados e preguiçosos”, os alheios ao processo de consolidação do grande capital nacional e transnacional e que devem se submeter ao ritmo do “desenvolvimento” para bem-estar de todos os civilizados. Razão por isso assiste a Álvaro de Azevedo Gonzaga quando no seu “Decolonialismo Indígena” alerta para os desacertos do multiculturalismo liberal, que traz consigo, incluso no momento constituinte de 1988, que existe o “nós”, brancos hegemónicos, e o “eles”,[3] cujos direitos estão em um canto da Constituição, fornecendo um olhar inevitável de distanciamento.

  1. a tese do “marco temporal” para a determinação da posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários implicaria num grave retrocesso em todo o longo caminho percorrido pelo constitucionalismo brasileiro desde a Constituição de 1934, na medida em que reduziria a intensidade protetiva estabelecida pelo constituinte de 1988, legitimando e outorgando patente às contínuas agressões contra as comunidades de hoje.
  • que observamos com preocupação é a intenção clara de desconhecer direitos constitucionalmente consignados, por parte do governo federal, ruralistas e agentes da grande indústria extrativista. Intenção que se expressa não só nos argumentos expostos em favor da FATMA – Fundação Tecnológica do Meio Ambiente - dentro do RE 1.017.365 que começará a ser decidido pelo STF, sob relatoria do Min. Edson Fachin, na próxima quinta feira 9 de setembro, senão também no Projeto de Lei 490/2007 que altera a Lei 6001 de 1973 e que rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara no ano 2009, foi novamente veiculado e absurdamente declarado constitucional pela CCJ. Faltam ainda etapas do controle preventivo de constitucionalidade, porém sabemos que a rigorosidade técnica e o vigor normativo da Carta de 1988 nem sempre vence a intencionalidade política, especialmente quando a boa-fé não é o forte dos propulsores da pretendida inovação jurídica.
  • tese do “marco temporal” sustenta que somente as terras que comprovadamente tenham sido ocupadas em 5 de outubro de 1988 deveriam ser consideradas “tradicionais”. Almeja, assim, instituir um limite fundado na data de promulgação do texto normativo para dizer que é a partir dali que os indígenas na Constituição teriam seus direitos reconhecidos. Do Projeto de lei que já mencionamos incluso se desprende que, sob este critério, deverá haver “contrato de cooperação entre índios e não-índios” para realizar as atividades que - basta um olhar no § 1º do artigo 231 da Carta para perceber - estão compreendidas no próprio conceito de terras “tradicionalmente ocupadas”. Esse “contrato”, na verdade, comprova a intenção de desconhecer a interpretação gramatical e teleológica do constituinte, que consagra, separado por vírgulas, quais as características, para efeitos de posse dos povos originários, dessas terras.

A Corte concedeu à lide a repercussão geral, nos termos do § 3º do artigo 102 da Constituição, em 6 de fevereiro de 2019, ou seja, há mais de dois anos. Conforme a ementa dessa decisão: “É dotada de repercussão geral a questão constitucional referente à definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”.

Não pretendemos chover sobre molhado, mas parece-nos que construir a norma de decisão no caso implica uma especial rigorosidade na leitura do texto constitucional, em particular de todos os dispositivos do Capítulo VIII do Título VIII da Carta, mas também de critérios hermenêuticos de caráter histórico, relacionados com a perene intenção de abrir espaços a um tipo de desenvolvimento econômico no qual o lucro como objetivo se torna o cruel carrasco da natureza, das formas de vida, dos rituais e costumes, do sentido de dignidade que repousa nas comunidades indígenas. Aliás, esta questão foi muito bem detectada na decisão da Pet. 3388, quando a própria Corte detectou, no caso da demarcação das Terras Indígenas Raposa do Sol em Roraima, que criou-se um “falso antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado”.

A interpretação sistemática, o conteúdo axiológico e teleológico, bem como a força dos princípios que oferecem a coerência e unidade ao todo constitucional apontam para a impossibilidade de reconhecimento do “marco temporal”. Os direitos às terras tradicionalmente ocupadas não podem ser colocados como direitos em vias de consolidação. Não é isso o que se desprende da interpretação do texto. Veja-se que, se aplicássemos a doutrina dos direitos adquiridos, é sabido que esta não preserva posições contra alterações ou supressões de institutos pelo constituinte de 1988. No caso específico dos indígenas, o constituinte, em lugar de alterar ou suprimir direitos que estavam já reconhecidos na história constitucional, o que fez foi, com as críticas que do ponto de vista do multiculturalismo tem sido feitas e que mereceriam maior desenvolvimento, destinar capítulo próprio dentro do Título da Ordem Social para especialmente confirmar tais direitos. É dizer, fortaleceu o posicionamento e rol dos indígenas dentro do contexto não só territorial brasileiro senão dentro da composição da sociedade plural brasileira, outorgando proteção especial. Finalmente, se de marco temporal pudesse-se se falar o constituinte criaria, revisando o modelo jurídico do constitucionalismo, cláusulas de transição, exigindo a demonstração da ocupação física no momento da promulgação do texto em 5 de outubro de 1988. Não o fez porque não houve revisão alguma para negar direitos senão que se determinou que o Poder Público não deixe de prestar atenção a situações jurídicas que se consolidam pela tradição, para poder melhor proteger um grupo especialmente vulnerável, na sua identidade somática, cultural, linguística. Como quando diz ao Estado e ao governo de turno que a regra é a e vedação no parágrafo 5º do artigo 231 da Carta: é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, ou quando determinou que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, no artigo 232, em claro reconhecimento da sua capacidade processual.

No caso e como sempre, não se trata de construir decisões sobre a base de um juízo de conveniência e oportunidade, mas de constitucionalidade a partir dos textos e do relato dos fatos. O ser não se começa a existir a partir do nada, dizia Parménides (ex nihilo nihil fit).

Parece-nos também, ainda que a decisão na ação relacionada à demarcação da terra indígena Raposa Terra do Sol não seja considerada de efeitos vinculantes, o que significa que seus fundamentos não necessariamente se estendem a outros casos, contudo, e para muito além da chamada força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, como se estabelece na Relatoria do Min. Barroso, (Pet 3388 ED. 23/10/2013) a verdade é que seus argumentos técnicos podem e devem ser levados em conta pela carga jurídica que ostentam, tanto no plano de caracterização das pretensões constitucionais, bem como no da razoabilidade e a capacidade de produzir uma decisão judicial destinada a concretizar direitos fundamentais que, como também já tem sido colocado, precisam de máxima efetividade.

Hoje, o RE em tela é interposto pela FUNAI, ante acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que confirmou a reintegração de posse ajuizada pela FATMA - Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente – em uma área que administrativamente foi declarada de ocupação tradicional dos índígenas Xokleng, na Terra Indígena Ibirama La – Klãnõ, em Santa Catarina.

A maneira de arremate, a CIDH, com relação aos direitos sobre as terras dos povos originários já expus que:

Debe destacarse que la garantía adecuada de la propiedad comunitaria no implica solo su reconocimiento nominal, sino que comporta la observancia y respeto de la autonomía y autodeterminación de las comunidades indígenas sobre sus tierras. 154. Sobre lo anterior, es preciso recordar que “la normativa internacional relativa a pueblos y comunidades indígenas o tribales reconoce derechos a los pueblos como sujetos colectivos del Derecho Internacional y no únicamente a sus miembros [;...] los pueblos y comunidades indígenas o tribales, cohesionados por sus particulares formas de vida e identidad, ejercen algunos derechos reconocidos por la Convención desde una dimensión colectiva”, entre ellos, el derecho de propiedad de la tierra. Al respecto, la Corte ha señalado el derecho a la autodeterminación de los pueblos indígenas respecto a la “disposición libre [...] de sus riquezas y recursos naturales”, la que es necesaria para no verse privados de “sus propios medios de subsistencia”. Se ha indicado ya que el derecho de propiedad comunitaria debe ser observado de modo de garantizar el control por parte de los pueblos indígenas de los recursos naturales del territorio, así como su estilo de vida [...]. En ese sentido, tanto el Convenio 169, como la Declaración de las Naciones Unidas sobre Derechos de los Pueblos Indígenas, reconocen titularidad de derechos humanos a pueblos indígenas. La Declaración Americana sobre Derechos de los Pueblos Indígenas, en sus artículos VI y IX, respectivamente, preceptúa el deber estatal de reconocer “el derecho de los pueblos indígenas a su actuar colectivo”, y “la personalidad jurídica de los pueblos indígenas, respetando las formas de organización indígenas y promoviendo el ejercicio pleno de los derechos reconocidos en esta Declaración”. [4]

Evitar o assalto da dominação política, da exploração econômica selvagem dos aventureiros e mercenários da contemporaneidade que se expressa no chamado “marco temporal”, é questão que interessa a todo o Brasil porque é questão de afirmação de direitos fundamentais, por supuesto.

 

 

Notas e Referências

[1] Hans Staden. História Verídica. Tradução da língua alemã de Angel Bojadsen. Ministério da Cultura/ Deutsche Bank. 1998. P. 22.

[2] Fernando Novais. O Brasil de Hans Staden in Idem. P. 90

[3] Consulte-se a obra valiosa recém lançada do prestigiado professor da PUC/SP. Matrioska Editora. São Paulo. 2021, dentro da coleção Leituras Críticas Importam.

[4] Corte IDH. Caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de febrero de 2020. Serie C No. 400.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Manifestação // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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